O segundo número da Revista Mundo e Desenvolvimento tem seu dossiê dedicado ao tema: Os desafios e as possibilidades das relações entre a República Popular da China e a América Latina. Conforme se pode constatar por muitos indicadores, esta relação vem apresentando um salto expressivo desde o começo do Século XXI. O volume do comércio exterior, os investimentos diretos, tanto em fusões & aquisições como em greenfields, os empréstimos e financiamentos e as iniciativas de cooperação técnico-científica têm aumentado expressivamente. De forma similar, o grau de articulação política entre a China e muitos países da região tem se intensificado, de modo que foram firmados vários  acordos de “parcerias estratégicas”.

Em janeiro de 2018, no Chile, por ocasião do Fórum China-Celac, o Ministro de Relações exteriores da China, Wang Yi, convidou os países da região para se somarem à Iniciativa Cinturão e Rota, o grande projeto chinês de construção de infraestruturas. As discussões nesse sentido continuam.

Por outro lado, este maior envolvimento da China com a América Latina, tradicional área de influência dos Estados Unidos, tem provocado muitas inquietações entre os setores influentes de Washington. O que antes era visto como uma relação meramente comercial entre os países da região e a China, passou a ser visto com desconfiança pelo governo americano. Tal mal-estar foi externado pelo ex-secretário de Estado Rex Tillerson, em 12 de fevereiro de 2018, ao advertir a América Latina contra os “imperialismos” de China e Rússia. A substituição de Tillerson por Mike Pompeo fez com que essas críticas fossem exponencializadas. O estabelecimento de relações diplomáticas entre a China e o Panamá, a República Dominicana e El Salvador, no período de 2018-2019 provocou forte descontentamento por parte de Mike Pompeo, que em 19 de outubro de 2018 protestou contra os negócios desses países com a China.

Por conta dessas questões, este dossiê sobre as relações sino-latino-americanas busca trazer novos elementos para o debate. Os dois primeiros capítulos buscam oferecer uma abordagem abrangente sobre o contexto mundial que condiciona essas relações. O professor da UFABC, Dr. Giorgio Romano Schutte, em seu texto “A busca da hegemonia americana 3.0 e a ascensão chinesa. Entre a  transnacionalização do capital e a volta do conflito interestatal”, chama atenção ao fato de que os Estados Unidos enfrentaram com êxito, no início da década de 1980, a crise do modelo de hegemonia construído no pós-guerra, gerando uma hegemonia 2.0.

A partir da primeira década de 2000, os estadunidenses voltam a enfrentar um desafio similar, desta vez por parte da China, justamente quando inicia um processo de expansão, no intuito de superar sua posição de coadjuvante do capitalismo estadunidense. Uma China mais autônoma e assertiva começou a disputar o controle de tecnologia, desenvolver marcas e conquistar mercados para ela mesma organizar e centralizar cadeias globais de valor, e subir na hierarquia da divisão internacional de trabalho e se apropriar de uma parcela maior do valor adicionado.

A disputa se concentra no domínio da nova revolução tecnológica, conhecida como Indústria 4.0, que envolve a concorrência entre oligopólios e a disputa entre países mais avançados. Tal como discute Schutte, a rivalidade interestatal se mistura com a concorrência oligopolista.

Já o comunicador e ex-embaixador do Chile em Pequim, Fernando Reyes Matta, em seu artigo “Otra vez la guerra fría asoma en la américa latina”, faz uma reflexão sobre o recrudescimento de uma mentalidade de guerra-fria em nossa região. De acordo com ele, os três países-continentes membros permanentes do Conselho de Segurança (Estados Unidos, Rússia e China) estão fazendo da América Latina outro palco dos seus cenários de confronto.

Isso acontece em particular na Venezuela, onde, de um lado, há a presença de conselheiros militares russos e um alto endividamento do país sul-americano para com a China e, de outro, os Estados Unidos pressionando pela saída de Nicolás Maduro e a convocação de novas eleições. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos também pressionam vários países, especialmente o Chile, contra a crescente presença da China em toda a da América Latina. Esses ares da nova "Guerra Fria" encontram a América Latina muito fragmentada, com instituições inoperantes (como a CELAC) ou em extinção (como a Unasul). Em sua visão, Reyes Matta reforça a urgência de encontrar novas plataformas de consenso para a América Latina e o Caribe, onde o conceito de "multiassociação internacional" seja o eixo organizador para fazer frente a este contexto ameaçador.

Já tratando das possibilidades de cooperação entre a China e a América Latina, os professores Yan Yi e Li Xue, da Universidade de Hebei, China, contribuíram com o artigo “Research on the current situation and countermeasures of financial integration in China and Latin America”. De acordo com os autores, a cooperação comercial e financeira entre os dois lados está no seu melhor momento na história, da mesma forma que a cooperação para a promoção do desenvolvimento econômico entre China e da América Latina e sua contribuição para a economia global. Nesse sentido, o artigo apresenta uma lista de contramedidas para promover a interação benigna entre a China e a América Latina, a partir dos aspectos da economia real e serviços virtuais e de micro e macro regulamentações envolvendo os seguintes pontos: enfrentar o déficit de financiamento, aumentar o investimento de capital, realizar cooperação financeira multilateral, expandir o investimento greenfield, apoiar a economia real, incentivar empresas chinesas a fazer investimentos diretos diferenciados e complementares na América Latina e construir um sistema regional de alerta de risco financeiro.

Observado as possibilidades de cooperação entre China e América Latina do ponto de vista da construção de infraestruturas, Mauri da Silva, docente da FATEC de Ourinhos, em seu trabalho “Reflexões sobre a inciativa OBOR na América Latina e sua ajuda à superação na deficiência em infraestura econômica na região”, verifica que há uma grande defasagem do setor de infraestrutura da América Latina em disponibilidade com qualidade em relação aos países desenvolvidos. Isto é fruto da incapacidade histórica da região de estabelecer estratégias - e em levantar fundos em quantidade e prazo adequado.

No limiar do século XXI a China despontou na arena internacional como um ator global de peso. Com visão de longo prazo e poupança, ela lançou a iniciativa Uma Rota, Um Cinturão (OBOR, no inglês). Esta estratégia está baseada no planejamento, execução e financiamento de uma rede de infraestrutura ligando África, Ásia e Europa cujo propósito é aumentar sua área de influência econômica-política no mundo, assim como dinamizar seu crescimento econômico. Com isso, seu trabalho busca responder à seguinte questão: qual o potencial da iniciativa OBOR para melhorar a infraestrutura de nossa região?

Também abordando o tema da Nova Rota da Seda, Marcos Cordeiro Pires, docente da Unesp-Marília, nos brinda com seu artigo “A iniciativa Cinturão e Rota: suas derivações políticas, econômicas e culturais e seus vínculos com o futuro da América Latina”. Seu artigo tem por objetivo refletir sobre as possibilidades de cooperação entre a China e os países latino-americanos por meio do Fórum China-CELAC e também de uma eventual inclusão de nossa Região na Iniciativa Cinturão e Rota, tal como propôs o Ministro de Relações Exteriores da China, Wang Yi, na reunião ministerial do Fórum China-CELAC realizada em janeiro de 2018, em Santiago do Chile.

Para fazer frente a esta discussão, tratou-se de analisar aspectos políticos e econômicos que marcam o contexto regional, como a atuação dos Estados Unidos como tradicional potência hegemônica na América Latina e também as crises política e econômica que afetam a articulação regional. Num segundo momento buscamos refletir sobre as potencialidades da cooperação de modo a identificar os desafios e as oportunidades decorrentes de uma maior vinculação com a China num contexto de mudança tecnológica, como a Quarta Revolução Industrial. Esta tende a impactar áreas como a infraestrutura, meios de pagamento, Internet das Coisas, economia criativa, etc. O artigo conclui que para uma melhor cooperação com a China os países da América Latina precisam definir suas próprias prioridades e efetivamente se articularem para obter maiores benefícios nessa relação.

O professor e engenheiro chileno José Luis Valenzuela, vinculado ao Centro de Estudos Latino-Americanos sobre China (CELC), da Universidade Andrés Bello, busca refletir sobre a defasagem tecnológica de nossa região e sobre as possibilidades de cooperação com a China nesta área. Seu trabalho “A necesidad de buscar un acuerdo científico-tecnológico entre la República Popular China y los países latinoamericanos”, parte do pressuposto de que o mundo avança aceleradamente em direção a uma nova ordem global que, impulsionada pelo desenvolvimento de uma revolução científico-tecnológica com características altamente disruptivas, gera uma nova sociedade na qual os países líderes tenderão a se diferenciar ainda mais dos países atrasados, repetindo e ampliando um fenômeno similar ao que ocorreu na época da Primeira Revolução Industrial.

Na análise, Valenzuela mostra que tanto a América Latina quanto a África são continentes atrasados e que há uma necessidade urgente em se buscar um salto na capacidade de desenvolvimento da Ciência e Tecnologia. Desta forma, julga ser importante a adoção de estratégias sinergéticas dentro de cada continente e entre os dois continentes. No entanto, pondera que frente à magnitude do desafio, torna necessário ir ao encontro de uma associação com atores de alto nível desenvolvimento, entre os quais a República Popular da China, que se destaca como um parceiro altamente desejável.

A professora Mónica Ahumada Figueroa, da Universidade Tecnológica de Chile (INACAP), centra sua análise sobre a cooperação com a China a partir da perspectiva da Aliança do Pacífico. Seu texto “las proyecciones de la alianza del pacífico y las oportunidades de cooperación con China”, coloca como problema central discutir sobre a viabilidade de implementar as quatro linhas de ação da Aliança do Pacífico, quais sejam, tornar os países do bloco mais integrados, mais globais, mais conectados e mais cidadãos, alinhados com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável até 2030, vis-à-vis à cooperação com outros atores extrarregionais, como no caso a China.

Na sequência, Zhou Zhiwei, do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Academia Chinesa de Ciências Sociais (ILAS/CASS), um dos maiores especialistas chineses sobre o Brasil, em seu artigo “Prospect of China-Brazil relations from the perspective of “the belt and road initiative” faz uma retrospectiva sobre a relação bilateral, desde o governo sarney (1985-1990). Zhou Zhiwei trata de analisar o estado atual e as características das relações sino-brasileiras, aclarar alguns problemas e disputas nas relações bilaterais, e traçar algumas perspectivas sobre as relações entre China e Brasil a partir dos conceitos da “Iniciativa Cinturão e Rota".

De acordo com Zhou Zhiwei, desde o início do novo século, a ascensão da China tornou-se uma variável estratégica para a política externa brasileira. Com base nisso, a relação entre a China e o Brasil entrou em um estágio de rápidos avanços, com significativos resultados alcançados pela cooperação em vários campos. As relações políticas mostraram uma tendência de "escalada gradual", e a cooperação econômica e comercial alcançou benefícios mútuos e resultados ganha-ganha. Com o conteúdo de parcerias estratégicas, a cooperação em governança global tornou-se um importante ponto de crescimento nas relações bilaterais.

O artigo de Luís Antonio Paulino, professor da Unesp de Marília e Diretor do Instituto Confúcio na Unesp, trata de discutir um importante aspecto da diplomacia pública chinesa que são os Institutos Confúcio, no seu artigo “O papel dos Institutos Confúcio no Brasil durante no período 2008-2018: a experiência do instituto Confúcio na Unesp”. De acordo com Paulino, a criação dos Institutos Confúcio no Brasil veio atender uma necessidade importante para o país, que é a de formar uma nova geração de pesquisadores, cientistas, funcionários do governo, empresários, universitários e técnicos com o conhecimento da língua chinesa. Relacionar-se com a China, sobretudo nessa nova etapa da globalização, na qual a integração rasa entre países, proporcionada pelo comércio, dá lugar para uma integração profunda, por meio das cadeias globais de valor, que exigem coordenação de regras e políticas, é uma necessidade inescapável para o Brasil continuar seu processo de desenvolvimento e defender seus interesses econômicos e geopolíticos. Assim, é fundamental o papel que os Institutos Confúcio no Brasil estão desempenhando para a formação dessas novas gerações de brasileiros que terão que lidar com a China.

O último artigo do dossiê, “Las relaciones contemporáneas China-America latina: el giro hacia el Pacífico”, de autoria de Lucas Nascimento e Mônica Maynetto, tem por objetivo analisar o aprofundamento das trocas comerciais e a mudança do pivô geopolítico da região para o Pacífico. Os autores pontuam as reações dos Estados Unidos à presença chinesa na região, sobretudo no que se relaciona ao Acordo de Cooperação Econômica Transpacífica (TPP), e por fim verificam as possíveis mudanças estratégicas na América Latina em relação aos câmbios geopolíticos e hegemônicos globais.

Os autores concluem que diante das atuais mudanças estratégicas nas regras da economia mundial, a América Latina e o Caribe deveriam aproveitar as oportunidades de investimento por meio da busca de inclusão na Nova Rota da Seda. O artigo pontua que a inserção na nova Rota da Seda seria importante para a América Latina e Caribe alcançar níveis mais elevados de fluxos comerciais e garantir a acumulação de material necessária para o seu pleno desenvolvimento.

Diante da riqueza das temáticas e de abordagens, desejamos aos leitores que este dossiê de Mundo e Desenvolvimento possa proporcionar um entendimento maior sobre o relacionamento entre a América Latina e a República Popular da China.

Boa leitura!

 

André Scantimburgo (Editor)

Marcos Cordeiro Pires (Coordenador do IEEI-Unesp)

 

Maio de 2019.

ISSN 2596 - 108X

 

Publicado: 2019-06-02

Dossiê