O terceiro número da Revista Mundo e Desenvolvimento apresenta Dossiê Temático sobre a crise do multilateralismo. O objetivo central da Edição é congregar uma seleção de artigos que, a partir de perspectivas e análises especificas, contribuam para o entendimento do significado, das razões e das consequências da crise do multilateralismo no século XXI. Esse é um tema de relevância acadêmica e política para as Relações Internacionais, na medida em que, entre outros aspectos, envolve questões relacionadas às possibilidades de ação coletiva e cooperação internacional, com significativo impacto para as estratégias e agendas de desenvolvimento, tanto no âmbito interno dos Estados, quanto no âmbito global.

O conceito de multilateralismo e a noção de crise não são intuitivos. Entre as perspectivas teóricas há diferentes entendimentos sobre estas duas noções e a sua própria inter-relação. Mesmo assim, um entendimento que guarda relativo consenso é o de que o multilateralismo envolve um tipo de coordenação intencional e uma forma de interação entre os atores do sistema internacional visando respostas coletivas a problemas internacionais diversos. É um fenômeno condicionado por fatores contextuais, configurações de poder, normas e expectativas compartilhadas e que tem como um de seus espaços institucionais os regimes e as organizações internacionais.

Assim, mudanças no equilíbrio de poder internacional ou no eixo dinâmico da economia internacional, como as que presenciamos nos anos 2000, certamente impactam o multilateralismo e os regimes internacionais, sendo duas razões estruturais para a situação de crise. As múltiplas dimensões e a rivalidade geopolítica entre os Estados Unidos e a China impactam o funcionamento do multilateralismo tradicional e ensejam novas formas de cooperação, partindo de núcleos distintos. Contudo, o significado da crise do multilateralismo, suas consequências e os desafios enfrentados pelas instituições internacionais variam conforme a natureza dos atores relevantes que compõem as áreas de governança, assim como o desenho institucional das instâncias decisórias.

Situações de crise não são estranhas às relações internacionais. Boa parte da disciplina acadêmica de Relações Internacionais surgiu e se desenvolveu buscando entender as razões das crises internacionais. Do ponto de vista normativo, buscando formas de se evitar as crises e os conflitos. No caso do multilateralismo, pela sua própria característica, dificuldades e momentos de crises talvez sejam aspectos constitutivos da sua natureza. A questão é que há elementos, que se fortaleceram no desenrolar da segunda década dos anos 2000, no bojo da emergência de lideranças políticas conservadoras e de um nacionalismo não cooperativo em países que tiveram papel relevante na construção do multilateralismo no pós Segunda Guerra Mundial, que colocam desafios adicionais para as perspectivas de governança internacional. A título de exemplo, note-se a decisão recente da administração de Donald Trump nos Estados Unidos, de não aprovar a indicação de novos membros para o Órgão de Apelação do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, fato que praticamente inviabiliza a continuidade da existência desta instância multilateral de solução de controvérsias comerciais.

Em diferentes áreas temáticas, os regimes internacionais têm encontrado dificuldades crescentes para avançar entendimentos coletivos e há uma série de negociações internacionais paralisadas ou em sérias dificuldades em temas como mudanças climáticas e não proliferação, ao mesmo tempo em que crescem as formas de cooperação fragmentadas e informais. Adicionalmente, a crise do multilateralismo tem impactado outras temáticas de relações internacionais, como a cooperação na exploração espacial, os acordos sobre o meio ambiente, o estabelecimento de padrões da Internet e da tecnologia de 5G, o fornecimento de terras raras, a geocultura, etc. Na América Latina, a crise do multilateralismo apresenta características e dinâmicas particulares, que tem motivado novos esquemas de pensamento e estratégias de análise diante dessa realidade.

No âmbito institucional, a crise do multilateralismo nas Américas se manifesta no âmbito de organizações como a Organização dos Estados Americanos (OEA), a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos(CELAC), a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL) e mesmo de outras instituições, mas também no âmbito da coordenação ou da não coordenação das ações dos Estados nas respostas às situações de crise que envolvem países da região. Há um enfraquecimento de uma lógica de ação coletiva e um fortalecimento de perspectivas que enfatizam diferenças, cujas consequências geopolíticas e econômicas para os Estados e para a região como um todo não estão totalmente claras. As dificuldades do multilateralismo, cuja perda de um espaço institucional sul-americano é um dos sintomas recentes, colocam novos desafios para as possibilidades de desenvolvimento dos países e da região e para a resolução de crises, como é o caso da situação da Venezuela.

Para o Brasil, a crise do multilateralismo nas Américas representa uma diminuição na capacidade de ação brasileira na região. As experiências recentes de regionalismo, como o Grupo de Lima ou o Prosul, que privilegiam a interação e não a cooperação ou a integração regional parecem refletir certo desengajamento em relação às possibilidades de um multilateralismo abrangente e inclusivo, fortalecedor da posição do Brasil e da América Latina no mundo.

Os textos do presente Dossiê buscam contribuir para o entendimento das questões colocadas acima, tanto do ponto de vista teórico, quanto do ponto de vista empírico, abordando dimensões da crise do multilateralismo que envolvem o âmbito regional e o multilateral, além de agendas específicas, como a agenda de cooperação para o desenvolvimento e a cooperação transgovernamental.

Boa leitura!

Dr. André Scantimburgo (Editor chefe)

Dr. Daniel Morales (Organizador da edição)

Dr. Haroldo Ramanzini Junior (Organizador da edição)

Dr. Marcos Cordeiro Pires (Coeditor chefe)

Publicado: 2019-12-28